quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Assim conheci Marco


Quando Marco entrou na sala do Padre Severino para ser por mim entrevistado, naquela inquietante manhã de segunda-feira, eu havia acabado de conversar com seu parceiro. O medo primitivo já domado, olhei para a silhueta franzina do jovem que entrava na sala.
Era difícil supor que ele fosse autor do ato que lhe imputavam. Tinha aspecto frágil, era simpático e falante. Seu corpo fino, o rosto levemente encovado, as orelhas um pouco avantajadas e os olhos vivos, pequeninos, pareciam espreitar o momento propício para a fuga ou o ataque.
Aparência que compunha perfeitamente com seu nome de guerra. Era conhecido pelo apelido de Ratinho. Nomeação que ele aderira integralmente, como um elogio.
Nome que reaparece em diferentes momentos do discurso. Imagem que povoa os sonhos de Marco: ratos que aparecem em abundância, escalam móveis, passeiam destemidos pela cama e pelo quarto. Cena de um único símbolo que se repete, que se reproduz, reaparecendo nos diferentes lugares do quarto.
Nome-significante, autônomo em relação à significação mantida inacessível; nome que adquire a função de representar e de determinar o sujeito.

Sem que o sujeito possa de modo algum se dar conta, sem que ele saiba, literalmente, nada daquilo que está fazendo, basta simplesmente que ele seja incitado ao desenvolvimento da incidência significante que ele próprio introduziu como necessário à sua sustentação psicológica para que, desenvolvendo-a, tire daí uma certa solução, que não é forçosamente uma solução normativa, nem a solução melhor(...) (Lacan, 1995, p.364-365).


O gosto pelo apelido, o quase abandono do nome próprio, coincidia com a descoberta de uma possibilidade nova de existir, com o afastamento cada vez maior da convivência familiar. Marco conta que fugia da escola. A mãe o acompanhava até o portão do colégio, onde o deixava e seguia para o trabalho. Malgrado o zelo materno, ele retornava para casa. Justificava-se dizendo que não gostava de acordar cedo, voltava para dormir até tarde.

Eu me lembro: esgotos, porões, cavernas, sótãos, túneis, galerias, fendas, sarjetas, fossos, fossas sépticas, tanques, valas, bueiros, poços, latas de lixo, monturos, armazéns, despensas, galinheiros, chiqueiros, currais, estábulos... Meu mundo de rato - uma vida submersa em sombra, em trevas, em tons cinzentos, em penumbra e em escuridão, crepúsculo e noite, afastado do dia, da luz, do sol ofuscante, da claridade, dos raios penetrantes, das superfícies reluzentes e deslumbrantes. (Zaniewski, 1995, p. 17).


A casa servia-lhe de toca onde se escondia, evitando o enfrentamento, o encontro, o Outro, a vida social que lhe esperava e que rejeitava. Casa-útero na qual buscava imaginariamente estreitar-se, aconchegado, no colo cálido de sua mãe.
Aninhou-se e aliou-se melhor onde encontrou o antídoto para sua fragilidade. Quando se apartou da vida que desprezava no asfalto, e buscou entrincheirar-se no morro, e preparou-se para a aventura do ataque. Tivera a oportunidade de consolidar certa escolha subjetiva, sua forma peculiar de dominação do mundo, modo como conquistou possibilidade de reconhecimento.

"Na rua sou respeitado, as pessoas têm medo de mim. Eu tenho fama. As pessoas sabem quem é o Ratinho."


Mas ainda assim não deixava de ser um ratinho que sempre voltava para casa, onde sua mãe, a despeito de sua própria fragilidade, o esperava disposta a protegê-lo dos perigos que não compreendia.
Certamente não era apenas do fracasso social que fugia. Embora tivesse estudado apenas até a quinta série do primeiro grau, Marco apresentava desempenho escolar mediano, e sobressaía com desenvoltura nos esportes. Havia sido campeão no futebol do colégio e ganhara medalhas de ouro e prata no judô.
Havia uma grande expectativa por parte dos homens da família em relação ao sucesso de Marco no futebol. Mas algo de muito particular aconteceu com essa trajetória. A entrevista que realizei nesse mesmo dia com seu pai, a quem chamarei de JL, lança um pouco de luz nessa questão.

Nenhum comentário: