terça-feira, 27 de agosto de 2013

O herói globalizado



Marco era um típico representante de sua geração. Vaidoso, gostava de se vestir com roupas de marca, as quais ele considerava como fortes. Todos os seus objetos de uso pessoal precisavam ter essa mesma característica: serem fortes, custar caro.
Partilhava o gosto predominante – globalizado – sem distinção de raça ou classe e, assim, encarnava com propriedade a imagem paradoxal latino-americana.

Consumidores do século XXI, cidadãos do século XVIII, diria Canclini.

O mercado de moda jovem consolidado pela indústria têxtil data dos anos setenta do século passado. Antes, a moda era restrita a dois tipos de mercado: o da alta costura, voltado para uma clientela muito rica; e o produzido para a população em geral.
Os grupos de jovens que surgiram após os anos sessenta, cunharam formas de expressão muito próprias para comunicar o engajamento de contestação e de diferenciação social que buscavam, através do linguajar metafórico e hermético, das expressões artísticas, da forma de se vestir e de ornamentar o corpo, como modos possíveis de linguagem.
Os hippies e os punks iniciaram a criação de modelos que expressavam o estilo de vida existente no interior dessas culturas, originando a movimentação e crescimento dos mercados alternativos que se expandiram para muito além da proposta inicial, que era restrita a vendas de roupas usadas nos mercados de pulgas. 
Partiram desse mercado informal para a gestação de griffes que produzem a moda jovem, estabilizando um comércio constituído por jovens. As lojas empregam jovens e preservam a linguagem juvenil, situando esse mercado num lugar privilegiado para a criação de uma moda fina. 
Instituiu-se a tendência dúbia de criar um mercado tanto visando atingir o jovem como potencial consumidor, como produzir o signo jovem, como um objeto a ser consumido por todos, independente da faixa etária.

Marco também apreciava carros e motos, esses objetos lhe proporcionavam um algo mais para conquistar minas com facilidade. Achava que elas lhe davam mole por causa do carro e dos objetos que exibia. Divertia-se no fliperama com jogos como mortal combat, street fighter, ao som do encadeamento letrado do rap brasileiro e as jovens nos bailes funk.

  
A moda funk adaptou o senso estético dominante nas griffes mais conhecidas ao gosto peculiar da cultura desses grupos que desenvolveram interesse especial por roupas de marca: os bermudões coloridos, os bonés, os tênis, a camisa usada com os botões abertos para se vislumbrar as correntes que adornam o peito.
Esse estilo masculino, por excelência, contrastava com o gosto feminino. Moda que valorizava a forma do corpo: saias e blusas bem curtas, calças justas em tecido tipo cotton.
Vestir-se com roupas de marca, ostentar adereços e calçados importados não fazia parte da preocupação das garotas, voltadas para o despertar sensual presente no baile: o corpo propositadamente à mostra, os requebros excessivos, os corpos femininos que se tocavam entre si nas danças provocativas.
Ao contrário dessa tendência feminina, a indumentária dos rapazes tinha papel fundamental no jogo de sedução. Eles exibiam seus enfeites, signos de consumo, enquanto as jovens exibiam seus corpos, como se o corpo próprio fosse colocado em disponibilidade para o consumo.
Mercadoria posta em papel ativo, a garota era quem escolhia o consumidor que desejava. Seu olhar se voltava em busca daquele possuidor dos signos que ambos valorizavam para o homem. Uma jovem me revela:

Primeiro olho para os pés, e vejo qual o tênis ele usa. Se for uma marca legal, olho para o resto.  

Na cultura carioca, o funk inicialmente assumiu maior expressão nos bailes de subúrbio, como diversão pura, distanciada da onda de conscientização negra alimentada pelo soul, e da comercialização da música de balanço estimulada pela indústria fonográfica.
Nesses bailes, frequentados por milhares de pessoas, surgiram as danças coletivas com coreografias excitantes, passos ensaiados, tão afinados, que impressionavam pela unicidade que evocavam no olhar do espectador.
A festa servia para tudo e para nada. Diversão pura. Descarga de adrenalina, busca de uma vida sem limites, que no cerne guardava a promessa de apagamento do traço. Situava-se na fronteira do inédito. Não existem bailes como esses em nenhum outro lugar do mundo, segundo afirmou Hermano Vianna.
A qualidade da festa dependia da animação que o balanço raro da música importada, pouco conhecida, despertava. Mas a aceitação não era imediata. Antes, ela precisava ser testada, ver se servia para ser devorada. Uma vez aceita, era metamorfoseada, recriada na festa, em forma de refrões alegres e/ou obscenos.
Na festa reinava um erotismo contagiante, ora trabalhado nas coreografias espontâneas, ora apresentado como espetáculo em exibições programadas.
O clima alegre do baile se deve ao DJ, que se diverte em levar a massa ao delírio do transe, para apaziguá-lo em seguida, brincando com a domesticação do coletivo.
Na massa compacta que exacerbava excessos na pista de dança, o que pulsava latente era a possibilidade do massacre. Mas, de que massacre os DJs tinham medo?
A festa convivia com a expectativa da briga, do pânico, da morte que, às vezes, de fato acontecia. Mas o DJ apontava um perigo além que ele via como uma ameaça, porque pressentia o jogo perigoso que manipulava, ao lançar a proposta de fazer crescer a excitação libidinal até um ponto máximo, para depois dissolvê-la, tranquilizá-la no rala-rala, momento em que se formavam os pares românticos, em que se produzia uma movimentação que se assemelhava ao ato sexual, em que a fantasia de dissolução e de aniquilamento estava presente.
O DJ descrevia tal movimentação do baile como a ideal, identificando aí toda a sua maestria. Algumas vezes, a calmaria do aconchego não era alcançada e os ânimos se acirravam na explosão que transformava o baile em campo de guerra.
O que levava os jovens a buscar o baile como diversão? Muitos adolescentes ressaltavam o gosto pela música, pela dança, pela paquera. Outros diziam que eram movidos pelo prazer de brigar.
A possibilidade de haver brigas no baile era uma constante. Toda a sua organização trabalhava para manter estrito controle sobre a explosão. A empolgação excessiva era a tônica. Acalmá-la implicaria destruir o clima eufórico que melhor o caracterizava. Contudo, não era raro que a forte vibração terminasse em pancadaria.
            A emoção da luta entre galeras revelava o prazer do confronto dentro e fora do baile. A luta decidia a posição do grupo ante os demais e a reputação de cada membro dentro de sua galera.
A força da galera dependia da disposição de briga, em que a virilidade se desvelava no embate que transitava entre o lúdico e o erótico.
            Jovens moradores de bairros populares, favelas e conjuntos habitacionais uniam-se em pequenos grupos, agregavam-se em torno da proximidade espacial ou da adesão a determinado comando.
Na aparente disputa territorial, encenava-se o jogo entre grupos inimigos. As rivalidades eclodiam em diferenciações objetivas que garantiam a integridade do nós e o reconhecimento dos outros; diferenciação do eu que se encobria e se protegia, anônimo, no nós.
As galeras se reuniam nos bailes de clube, território livre onde o confronto podia ser potencializado conforme a liderança do DJ e da equipe que organizava o baile.
Na manipulação dos ritmos mixados pelo DJ a tensão se elevava e as brigas se intensificavam, momento de auge da festa. No baile chamado corredor, a orgia se traduzia no entusiasmo das brigas, comandadas pelos organizadores que dividiam o espaço físico em territórios para permitir o confronto aberto entre os diferentes grupos.
Mas, muitas letras de funk condenavam as brigas. Elas investiam contra a violência praticada nos bailes e entre as galeras, demarcando uma ideologia de classe, revolvendo a discussão politizada quase esquecida pela música popular.  

Surfista Zona Sul tem corpo morenão
Surfista Zona Norte queimado de alta tensão
Surfista Zona Sul desliza cheio de graça
Surfista Zona Norte com a mão suja de graxa
Surfista Zona Sul vai da Barra pro Havaí
Surfista Zona Norte da Central a Japeri.
(Rap do Surfista, Marlboro, Juca e Mosca)

No discurso cortante, pouco melodioso, sente-se fluir o realismo em estado bruto. A música novamente começava a se transformar em veículo de denúncia dos contrastes e das injustiças sociais.
Valorizando produções musicais, como esta aqui citada, que dramatizam a vida pobre e mundana das camadas populares, o funk abria espaço para se tornar o principal porta-voz das dificuldades cotidianas enfrentadas pelas comunidades periféricas.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Nasce o mito

 

            Marco pulou o muro da João Luiz Alves, correu, pegou um ônibus até uma favela próxima e foi direto para a boca de fumo.
Não conhecia ninguém naquele morro.
Ele se apresentou, valendo-se da fama de que se orgulhava.
Foi muito bem recebido pela confraria, que lhe garantiu:
- Sinta-se em casa.
Ofereceram-lhe comida e cocaína. Mas Marco nada aceitou. Não podia dar bobeira num morro que não era dele. A sobrevivência depende desse estado de alerta contra a autofagia que permeia as relações, mesmo as de solidariedade, entre os irmãos.
Pediu apenas dinheiro e uma muda de roupa.
Pegou um taxi e foi para o seu morro, onde se sentia seguro.
Lá, uma surpresa o aguardava.
Foi recebido com pompas de anjo 45.
Marco também gostava de acreditar que era protetor dos fracos e dos oprimidos. Tentava seguir o ideário que continha receitas de como devia agir um bom bandido: aquele que procura não entrar em conflito com a comunidade, busca sanear as necessidades; distribui aos pobres o que usurpa dos ricos.
Foi organizada uma festa em sua homenagem. Uma festança de arromba. O que implica dizer que todos os preparativos foram marcados pelo excesso.
O ambiente exalava abundância.
O som altíssimo da música funk dominava, como um chicote sonoro cortava o vento e presidia o ar, propagava-se muito além daquelas fronteiras, lutava com outros sons pela cidade até se render ao último limite.
Mas, na comunidade, o funk se viu abatido, amortecido pela queima colossal dos fogos de artifício, que lançavam ao espaço uma profusão de cores, enquanto a força explosiva amordaçava o som rítmico e grave que pulsava nos enormes alto-falantes.
Enciumados, os fuzis emitiam gemidos mortíferos, marcavam presença, gritavam à atmosfera a certeza de se saberem invencíveis.
A festa varou noites, entrou dias, enquanto houvesse força física a ser exaurida. Parceiros de comando que dominavam outros morros foram convidados para compartilhar a ocasião festiva.
A primeira noite da grande comemoração reuniu toda a galera no baile para a comunidade. Neste, não há tolerância com brigas. É um baile pacífico, de confraternização, em que não se misturam galeras.
Nos bailes de clube, ao contrário, os frequentadores sabem que se as galeras se misturarem irão guerrear. Neste, o motor da diversão não é tanto a música, a dança ou a paquera, mas o confronto que poderá ocorrer entre galeras e, entre essas e a polícia. Muitas vezes, a movimentação dos bailes de clube serve aos propósitos beligerantes das diferentes galeras e da polícia, para encobrir atos de vingança, para armar emboscadas contra os inimigos. 
O baile de comunidade é diferente, surge como uma doação do dono do morro. Por isto, cabe-lhe ditar as regras. Pode-se até dizer que se constitui como um baile ideológico. A organização conduz os participantes a saudarem os líderes do movimento, que são, afinal, os promotores do evento. Não deixa de ser um investimento de marketing, uma promoção formadora de opinião como qualquer outra.
O tráfico se assemelha a uma irmandade rudimentar em sua estrutura organizativa, gira em torno da amizade, da troca de favores; um mercado entre amigos, com regras a serem respeitadas, que se utiliza dos serviços da galera que forma. Tipo de ordem, cujas regularidades, por vezes, nos parecem mal delineadas, quase apagadas; outras, grotescamente cristalizadas.
Os limites desse campo são frouxos. Não apresenta a delimitação visível de uma instituição, de uma organização burocratizada, com estratégias definidas, metas a serem alcançadas nem a hierarquia férrea da máfia. Ele se inspira na cultura militar, com forte presença nos adereços, nas roupas, nas armas e na linguagem.
             Na força contagiante do baile, o êxtase hipnótico da galera atinge seu máximo com o aparecimento rápido, apocalíptico, das figuras centrais do comando, que oferecem aos olhos imaturos e sedentos, os signos que ostentam a exacerbação desse tipo de poder: fuzis AR-15, K-47, pistolas e granadas.
            No auge da euforia, os líderes do movimento aparecem exibindo correntes e os medalhões dourados. Instante em que incorporam personagens lendários: bandoleiros, cuja vida perigosa desafia a força e a astúcia de seus adversários - do crime e da polícia. Postam-se em cena como formas petrificadas: homens-ação, imagem pujante que compartilham com a galera atiçada.
Certa feita um jovem me contou, com exaltação, sua participação num baile, cuja maior atração fora a aparição de um líder convidado, que se apresentara com o corpo coberto de granadas.
São figuras como essas que adquirem para os jovens frequentadores conotação lendária, pelas histórias que rondam suas vidas aventureiras.
Erguem idolatrias, acalantam ilusões e embalam sonhos de onipotência.
Marco firmou presença triunfal no baile com sua indumentária arrojada. Arrumou-se a caráter para seu momento de glória: calça com estampa tipo camuflagem; duas cartucheiras cruzadas adornavam-lhe o peito nu, deixando à mostra a grossa corrente de ouro.
Do auge da fama, no topo do morro, Marco fez ecoar em sequências rítmicas algumas rajadas do fuzil AR-15.
Precisava despertar a atenção dos participantes do baile, que aguardavam por esse instante culminante.
Momento em que os jovens, ensandecidos, no ritmo do som, bradavam o nome do comando que dominava o morro. Apologia que dava o tom à festa. Era chegada a hora do clímax. A hora de sua aparição.
Os olhares se voltaram extasiados. Reconheciam-no:
_ Olha, é o Ratinho!
Era admirado, no cerne de seu magnético ser-tabu.
Era o superstar que dominava aquela noite.
Aclamado pela galera, era feito modelo; tornado mito.
A liderança mais forte o apresentava como exemplar.
Personificava o bandido-herói.
Era chegada a hora de anunciar sua maior recompensa: a promoção pela qual ansiava, depois de tantos feitos heroicos.

Marco assumiu a gerência da boca.