terça-feira, 20 de agosto de 2013

Nasce o mito

 

            Marco pulou o muro da João Luiz Alves, correu, pegou um ônibus até uma favela próxima e foi direto para a boca de fumo.
Não conhecia ninguém naquele morro.
Ele se apresentou, valendo-se da fama de que se orgulhava.
Foi muito bem recebido pela confraria, que lhe garantiu:
- Sinta-se em casa.
Ofereceram-lhe comida e cocaína. Mas Marco nada aceitou. Não podia dar bobeira num morro que não era dele. A sobrevivência depende desse estado de alerta contra a autofagia que permeia as relações, mesmo as de solidariedade, entre os irmãos.
Pediu apenas dinheiro e uma muda de roupa.
Pegou um taxi e foi para o seu morro, onde se sentia seguro.
Lá, uma surpresa o aguardava.
Foi recebido com pompas de anjo 45.
Marco também gostava de acreditar que era protetor dos fracos e dos oprimidos. Tentava seguir o ideário que continha receitas de como devia agir um bom bandido: aquele que procura não entrar em conflito com a comunidade, busca sanear as necessidades; distribui aos pobres o que usurpa dos ricos.
Foi organizada uma festa em sua homenagem. Uma festança de arromba. O que implica dizer que todos os preparativos foram marcados pelo excesso.
O ambiente exalava abundância.
O som altíssimo da música funk dominava, como um chicote sonoro cortava o vento e presidia o ar, propagava-se muito além daquelas fronteiras, lutava com outros sons pela cidade até se render ao último limite.
Mas, na comunidade, o funk se viu abatido, amortecido pela queima colossal dos fogos de artifício, que lançavam ao espaço uma profusão de cores, enquanto a força explosiva amordaçava o som rítmico e grave que pulsava nos enormes alto-falantes.
Enciumados, os fuzis emitiam gemidos mortíferos, marcavam presença, gritavam à atmosfera a certeza de se saberem invencíveis.
A festa varou noites, entrou dias, enquanto houvesse força física a ser exaurida. Parceiros de comando que dominavam outros morros foram convidados para compartilhar a ocasião festiva.
A primeira noite da grande comemoração reuniu toda a galera no baile para a comunidade. Neste, não há tolerância com brigas. É um baile pacífico, de confraternização, em que não se misturam galeras.
Nos bailes de clube, ao contrário, os frequentadores sabem que se as galeras se misturarem irão guerrear. Neste, o motor da diversão não é tanto a música, a dança ou a paquera, mas o confronto que poderá ocorrer entre galeras e, entre essas e a polícia. Muitas vezes, a movimentação dos bailes de clube serve aos propósitos beligerantes das diferentes galeras e da polícia, para encobrir atos de vingança, para armar emboscadas contra os inimigos. 
O baile de comunidade é diferente, surge como uma doação do dono do morro. Por isto, cabe-lhe ditar as regras. Pode-se até dizer que se constitui como um baile ideológico. A organização conduz os participantes a saudarem os líderes do movimento, que são, afinal, os promotores do evento. Não deixa de ser um investimento de marketing, uma promoção formadora de opinião como qualquer outra.
O tráfico se assemelha a uma irmandade rudimentar em sua estrutura organizativa, gira em torno da amizade, da troca de favores; um mercado entre amigos, com regras a serem respeitadas, que se utiliza dos serviços da galera que forma. Tipo de ordem, cujas regularidades, por vezes, nos parecem mal delineadas, quase apagadas; outras, grotescamente cristalizadas.
Os limites desse campo são frouxos. Não apresenta a delimitação visível de uma instituição, de uma organização burocratizada, com estratégias definidas, metas a serem alcançadas nem a hierarquia férrea da máfia. Ele se inspira na cultura militar, com forte presença nos adereços, nas roupas, nas armas e na linguagem.
             Na força contagiante do baile, o êxtase hipnótico da galera atinge seu máximo com o aparecimento rápido, apocalíptico, das figuras centrais do comando, que oferecem aos olhos imaturos e sedentos, os signos que ostentam a exacerbação desse tipo de poder: fuzis AR-15, K-47, pistolas e granadas.
            No auge da euforia, os líderes do movimento aparecem exibindo correntes e os medalhões dourados. Instante em que incorporam personagens lendários: bandoleiros, cuja vida perigosa desafia a força e a astúcia de seus adversários - do crime e da polícia. Postam-se em cena como formas petrificadas: homens-ação, imagem pujante que compartilham com a galera atiçada.
Certa feita um jovem me contou, com exaltação, sua participação num baile, cuja maior atração fora a aparição de um líder convidado, que se apresentara com o corpo coberto de granadas.
São figuras como essas que adquirem para os jovens frequentadores conotação lendária, pelas histórias que rondam suas vidas aventureiras.
Erguem idolatrias, acalantam ilusões e embalam sonhos de onipotência.
Marco firmou presença triunfal no baile com sua indumentária arrojada. Arrumou-se a caráter para seu momento de glória: calça com estampa tipo camuflagem; duas cartucheiras cruzadas adornavam-lhe o peito nu, deixando à mostra a grossa corrente de ouro.
Do auge da fama, no topo do morro, Marco fez ecoar em sequências rítmicas algumas rajadas do fuzil AR-15.
Precisava despertar a atenção dos participantes do baile, que aguardavam por esse instante culminante.
Momento em que os jovens, ensandecidos, no ritmo do som, bradavam o nome do comando que dominava o morro. Apologia que dava o tom à festa. Era chegada a hora do clímax. A hora de sua aparição.
Os olhares se voltaram extasiados. Reconheciam-no:
_ Olha, é o Ratinho!
Era admirado, no cerne de seu magnético ser-tabu.
Era o superstar que dominava aquela noite.
Aclamado pela galera, era feito modelo; tornado mito.
A liderança mais forte o apresentava como exemplar.
Personificava o bandido-herói.
Era chegada a hora de anunciar sua maior recompensa: a promoção pela qual ansiava, depois de tantos feitos heroicos.

Marco assumiu a gerência da boca.

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