segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pandora

Com o mito da caixa de Pandora, Laurindo queria alertar sobre perigos que rondavam o ato de abrir o cofre. Acaso ele achava que a vila corria riscos com a abertura do cofre?

_ Isso não é digno de ser levado a sério. Não acredito que ainda hoje existam pessoas que creditem valor a essas invencionices primitivas, disse Eleonora bruscamente.

_ Eu Invejo seu entusiasmo. Verdade. Quando digo isso, refiro-me ao sentido grego da palavra, que quer dizer sopro divino. O entusiasmado vive a exaltação extrema da inspiração divina; traz um deus dentro de si. Você é uma ótima narradora, disso ninguém duvida. Mas tem ainda muito que aprender, retrucou Laurindo.

_ Apenas sigo o meu caminho de filha da narração. Sim. Fiel aprendiz de meu destino. Mas não sou escudeira das tradições, disse Eleonora orgulhosa.

_ A verdade do mito segue a lógica do inconsciente. Todo mito encerra uma intuição compreensiva que não requer provas para ser aceita, interveio Inácio, outro respeitado narrador. Toda vez que tinha oportunidade, Inácio introduzia nos debates conceitos psicanalíticos que devorava em livros especializados. Interessava-o as particularidades que cada situação apresentava, e costumava dizer que queria entender o que movia os homens.

_ Não acham que o vaso de Pandora se assemelha ao psiquismo humano? Pandora, uma semideusa, ambiciona se realizar como mulher de Zeus, tornando-se uma deusa. Deseja realizar-se na plenitude do Olimpo. Eu a imagino como símbolo da pura pulsão que também anseia pela realização através de sua descarga. A esperança é o resto que sobra da eclosão pulsional. Ela permanece presa à borda do vaso, como o representante da pulsão se mantém no limiar do psiquismo. No cofre, na caixa ou, se preferirem, no inconsciente, residem forças pulsionais que ameaçam o eu, simbolizado no mito pelo simples e mortal homem. Quando a caixa é inesperadamente aberta por Pandora - por forças pulsionais irreprimíveis - os malefícios dominam a vida do homem. Os malefícios representam o desprazer que o eu se esforça por evitar, muitas vezes inutilmente, mantendo-se no fogo cruzado da pressão do conflito que está além de seu entendimento. No mito, o homem age movido por forças que o transcendem, desígnios dos deuses. Teme que sua ação possa provocar a ira dos deuses que, a rigor, se vingam impiedosamente. No psiquismo, o eu também teme as represálias do terrível pai, forma que algumas vezes assume o vigoroso supereu. O recalque é tal como a força que mantém bem fechada a tampa da caixa. Funciona como uma barra que assegura ao eu limites que o mantém distante da ameaça da descarga pulsional, evitando assim o desprazer. Não estou seguro se todos vocês têm noção do que seja o recalque. Vou apenas lhes dizer que se trata de um conceito tão importante, que chega a ser considerado por muitos o pilar sobre o qual se sustenta toda a construção da psicanálise. Para início de conversa, o recalque constitui o núcleo original do inconsciente. Este conceito vocês não podem dizer que desconhecem. Porque já falei sobre isso muitas e muitas vezes. O inconsciente, como um saber que não se sabe, remete-nos à idéia de um lugar desconhecido, à outra cena, como... como acontece na história de Alice no país das maravilhas. Pois bem, o recalque designa o ato de fazer recuar alguma coisa, como uma repulsa em admitir algum aspecto penoso da realidade. Por isto diz respeito ao processo de manter no inconsciente tanto idéias quanto representações ligadas às pulsões, cuja realização pode afetar o equilíbrio do funcionamento psíquico. Podemos falar em recalque quando, por exemplo, uma história vivida, uma situação, um pensamento ou algo imaginado não encontra tradução, quer dizer, não pode ser expresso em palavras, e se mantém inacessível, porquanto sua tradução produziria desprazer. Como se o desprazer perturbasse o pensamento e, com isso, emperrasse o processo da tradução, disse Inácio.

_ A caixa de Pandora significa que uma ação pequena e bem-intencionada pode liberar uma avalanche de repercussões negativas. A linguagem mitológica com todos os seus paradoxos nasce da necessidade de se conhecer mais. Lembro aos amigos que na narração mitológica, os significados são muito ampliados e sua redução explicativa pode destruir a compreensão holística do mito. O bom ouvinte é aquele que entra na narrativa sem preconceitos e sem a racionalidade das teorias, para acompanhar o que a história tenta criar. Disse Laurindo dirigindo rápidos olhares a Eleonora e a Inácio. Laurindo mantinha intacta sua crença no mito. Achava que a transcendência temporal dessas histórias resguardava em si o aspecto de universalidade que era a essência da atemporalidade que tanto prezava.

Enquanto isso, nas conversinhas, as dúvidas apareciam e, dissonantes, se multiplicavam: _ Não acha que ele está querendo nos amedrontar, impedir que a gente abra o cofre? _ Não sei não, o cofre fechado pode ser um sinal... merece respeito. _ Se o cofre está fechado durante tanto tempo e ninguém sabe dizer por que isso se deu, é a hora de sabermos o que tem nele.

_ Pandora destampa a ânfora e a civilização inicia uma era de mazelas sem fim. Esse traumático retorno pulsional atinge frontalmente o homem, formatando, seus traumas, sua vida psíquica. Males de diversas ordens aguardam pelo homem no mundo. Em todos os tempos sempre foi assim. Este é o enredo desta história que pode nos ajudar a refletir sobre as mazelas e os traumas dos novos tempos. Se não sofremos mais a ação compressora da severidade normativa, monstro neurotizante da época vitoriana, nem por isso deixamos de fabricar loucuras, neuroses. Estudiosos da cultura nos ajudam a enumerar algumas mazelas, essência dos traumas psíquicos de nossa época. Dentre as mais discutidas estão: a falta de referência, o descrédito na autoridade, o enfraquecimento dos laços comunais, a morte do pai, a crise ética da cultura, a ausência de limites no plano político. Muitos acreditam que elas são efeitos da liberalização excessiva que reina no mundo atual. Isso nos preocupa. Que é feito do homem sem ideais para cultuar? Os ideais são as fronteiras da humanidade do homem – alicerces morais de seu eu. Ideais são as barreiras construtoras da vida coletiva. Sem ideais, o que resta ao homem senão se transformar num joguete nas mãos de suas filhas, deusas de nosso tempo - a ciência e a tecnologia? Estas, suas crias, são indiferentes ao homem. Não lhes importa as crueldades que o homem perpetua no mundo, tampouco lhes sensibiliza, se no caminho árido e escuro que precisa trilhar, ele não se encontra feliz. Fazem do homem um ser alienígena de si; escravo do Outro devorador. Estar aprisionado no tempo presente, sem passado para reverenciar, à espera de um futuro cada vez mais incerto, isto é o que queremos para nossos filhos e netos? Disse Camilo, com sua voz encorpada.

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