segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O rito processual

Nas apresentações judiciárias medievais, o processo civil serve de modelo a todos os processos. O ato jurídico é encenado entre três personagens: o juiz, o acusador e o defensor. Cada um conhece o desempenho de seus papéis e sabe de cor as palavras que devem ser proferidas.
No curso processual os personagens repisam a lei, e assim se reconhecem como sujeitos da instituição.
O procedimento é um jogo ritual, uma técnica de recuperação dos sujeitos. Em consonância com a ciência do mestre, desenvolve-se um combate conforme a lógica da lei.
Cada um dos personagens enuncia ter a lei a seu favor, a argumentação casuística avança até a conclusão.
Há uma dupla figuração na ordem escolástica. Na primeira, encontra-se a lógica do processo, envolve o ato das três pessoas que assumem os papéis: de juiz, de requerente e de réu. Na segunda, há a figuração mítica: o juiz diz o direito às partes do processo, ao requerente e ao réu.
Na encenação do rito processual, o juiz detém a máscara do sacerdote. Ele assume o lugar sacro do intocável porque representa o Outro, o onipotente, o ausente.
Quando o juiz profere a sentença, sua consciência leiga desaparece. Ele faz falar a Lei, porque sua enunciação se positiviza nas alegações.
Ao julgar, o juiz se apaga em favor da verdade da Lei. E o julgamento se ajusta no lugar da verdade: res judicata pro veritate habetur.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A dimensão da incerteza

A dimensão ilimitada da incerteza é inerente ao universo do mito antigo, que posiciona os sujeitos numa espera da palavra temível, da qual o mestre será o portador, e o responsável pela repetição da lei.
Como legítimo intérprete da lei, o doutor faz funcionar essa casuística, formatando o conflito particular, trazido por cada um, aos ditames da lei.
Esse jogo mantém relação com o conjunto do sistema, isto é, com a ampla teoria da Lei. Ele opera no interior de linhas traçadas pelo dogmatismo.
O direito se constitui pelo conjunto do texto, da glosa e da jurisprudência.
A jurisprudência é a ciência dos casos que está sob poder exclusivo do mestre; é a via por onde se efetiva a censura. Como técnica de manipulação, sua eficácia será comprovada quando os sujeitos declararem seu amor à lei em substituição ao desejo.
Na instituição o doutor assume um papel de transparência; personifica o instrumento de acesso ao saber.
O mestre representa a posição do sujeito em extrema incerteza, que deve galgar a posição oposta onde se encontra a regra.
O percurso dessa lógica se constrói na argumentação dos contrários, os prós e os contras se contrapõem ante uma questão lançada pelo doutor.
Ao desenhar os traços desse caminho em direção à submissão, no interior de uma casuística, o doutor produz seu cerimonial obsessivo.
Estágio em que se presencia o caráter formal e perfeccionista do pensamento jurídico.
Toda instituição busca se respaldar numa segurança essencial que se funda no ritual de exclusão de um culpado, personagem que encarna o mal a ser extirpado.
Ao encenar a liturgia de sua prática, a dogmática jurídica organiza a dramaturgia da regra.
Aproxima-nos dos rituais que expressam a fé jurídica, e aponta-nos como a instituição se comunica no interior da sociedade e no percurso da história.
O processo forja uma ação onde o conflito é novamente dramatizado. E no centro dessa encenação, a Lei se explicita.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lógica da Lei

Os romanos foram os primeiros a descobrir que existe uma lógica da lei que atravessa os tempos. Eles nos conduziram à produção de uma ciência universal do poder.
O direito romano originário exprime a sentença lógica pertinente ao direito civil: res sanctissima civilis sapientia. Máxima que esboça a proximidade entre religião e ciência jurídica; e a simetria entre direito romano e teologia latina.
Em contrapartida, a igreja se apropriou do texto jurídico civil para ancorar sua ordem interna.
O discurso do mestre, assentado no mito pontifício e na legendária história dos romanos, está apto a desdobrar suas técnicas.
Em todo comentário transita uma incerteza. E esta permite versões diversas da regra, que é apresentada como clarificação da obscuridade do texto.
A lei espalha suas raízes no terreno mais ou menos insondável da dúvida. Enquanto o intérprete surge como aquele capaz de identificar a boa raiz, diferenciando-a da ruim.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Decreto

O Decreto, escrito pelo monge Graciano, é considerado a obra medieval por excelência, o livro jurídico de maior importância.
Os decretos baixados pelos papas foram sendo acrescentados ao texto original através dos séculos.
A importância do texto não é dada por um ou outro papa individualmente, mas pela autoridade pontifícia que atravessa a existência pessoal dos papas e as circunstâncias históricas que determinam o surgimento da regra.
Assim se produziu a escritura sagrada, cuja função é declarar a potência do Uno que o pontífice representa: o pai onipotente.
Graciano compôs esse texto a partir de extratos destacados de seus contextos imediatos e os dotou de homogeneidade, e este método de composição ilustra o que se pode chamar de verdade do dogma. Ou seja, aquela verdade que sobrevive ao apagamento da história.
Quando o dogmatismo enuncia a regra jurídica, ele exige que ela seja percebida como dissociada do comentador, fazendo crer que a ação do comentador contém um tipo de operação lógica capaz de restaurar o texto.
Como se no momento em que se instaura a manifestação da Lei, o jurista fosse capaz de captar a lógica do texto, e dar-lhe sentido.
O resultado não é tanto o que importa, pois a verdade se apresenta na anterioridade, na trajetória escolhida pelo intérprete, no rito metódico, na casuística que fornece ao símbolo a potência de respostas, contraditórias, que variam ao infinito, mas permanecem legais, em razão dos poderes conferidos ao comentário.
Influenciada diretamente pelo direito romano, a Idade Média resgatou a hierarquia que distinguia o lugar dos intérpretes.
No topo, o imperador, abaixo dele, os doutores e a última palavra ficava a cargo da instituição. A única interpretação, superior e necessária, tinha o poder de calar qualquer manifestação interpretativa inferior. Lógica que se expressa como interpretatio necessaria.
Nesse processo, o doutor era considerado um subalterno que jamais devia pôr em dúvida o julgamento do Chefe, sob pena de cometer um sacrilégio.
Mas o doutor era um intérprete privilegiado, portador autônomo do texto, a quem era delegada a tarefa de fazer falar a Lei.