segunda-feira, 29 de junho de 2009

Conferência para magistrados

Freud realizou em Viena (1906) uma conferência para magistrados, a convite do catedrático em jurisprudência Löffler, na qual ele esclarece como se processa a clivagem do eu.
Nesta conferência aborda o método de associação de idéias, inspirado nas experiências de Wundt, que se resume na apresentação de uma palavra-estímulo ao sujeito da experiência, o qual deve responder com outra palavra-reação o mais rápido possível.
Bleuler e Jung re-significaram essa experiência de Wundt ao relacionarem a palavra-reação evocada pelo sujeito, a um conteúdo ideativo presente na sua mente naquele instante. Palavra capaz de influenciar o momento da reação ao trazer à memória outra palavra que guarda estreita relação com o complexo de idéias que lhe deu origem.
Uma auto-traição psíquica se torna perceptível ao observador, na flagrante perturbação que altera o tempo da reação normal, tornando-o muito mais longo do que o comum, o que comprova o investimento afetivo do complexo perturbador.
Na conferência, Freud constrói uma analogia entre o criminoso e o histérico, acentuando o fato de que ambos portam um segredo, e afirma que a evocação das palavras em associação não são arbitrárias, tampouco casuais.
No caso do criminoso, o sujeito conhece o segredo e deseja ocultá-lo. Ao passo que no caso do histérico, o segredo está oculto para o próprio sujeito.
A associação de idéias na psicanálise tem como objetivo atingir um segredo que o histérico esconde de si mesmo, mantendo-o afastado da consciência. E é justamente esse material psíquico ativamente recalcado que é a fonte dos sintomas somáticos e psíquicos.
A resistência que o paciente apresenta para evocar palavras que o aproximam do complexo perturbador acompanha o curso de todo o tratamento. Suas hesitações revelam a distância em que se encontra de seu segredo.
A resistência manejada na análise está situada no inconsciente, ao contrário da resistência que aparece no interrogatório judicial que se situa na consciência.
A resistência que acompanha o processo de análise se mantém inacessível – inconsciente – como um mecanismo defensivo do eu.
O que se nomeia aqui por inconsciente, é a região psíquica inteiramente alheia ao eu, e que, inclusive, com ele está em conflito. O inconsciente, ou o isso, consiste em processo psíquico cuja suposta existência apenas se pode inferir a partir de seus efeitos, no momento mesmo em que está sendo ativado.
O que existe no inconsciente são investimentos pulsionais que buscam descarga, enquanto que o eu é o órgão sensório do psiquismo responsável pela operação da consciência.
O eu é uma parte do inconsciente modificada pela influência da experiência. Sob as ordens do inconsciente, o eu controla a motilidade e as necessidades, interpondo entre estas funções uma protelação, que consiste propriamente na atividade do pensamento. Situa-se aqui a resistência que o eu opõe ao isso.
O eu se separou do isso por força das resistências decorrentes do recalque, enquanto que as idéias suprimidas pelo mecanismo do recalque fundiram-se ao isso.
Freud utiliza a imagem da servidão para apresentar a função mediadora do eu que, afinal, serve a três senhores: a realidade, o supereu e o isso. Sua tarefa é tentar harmonizar as exigências incompatíveis desses senhores.
Na tentativa de mediar as exigências do isso e a realidade, muitas vezes, o eu é forçado a encobrir as ordens inconscientes do isso, mediante racionalizações.
Já o supereu confunde-se na intimidade do isso, e neste se funde, situando-se mais distante do sistema perceptivo do que o eu. O supereu observa com severidade o eu, punindo-o com sentimentos de inferioridade e culpa.
O eu, pressionado pelo isso, confinado pelo supereu e repelido pela realidade, luta para estabelecer o equilíbrio entre as forças e as influências que nele atuam. Quando é obrigado a admitir suas fraquezas, irrompe em ansiedade.
Freud termina a conferência lembrando-nos uma questão de ordem ética importante:

“(...) pelas normas do direito penal, é vedado sujeitar o acusado a qualquer medida que o tome de surpresa; portanto, ele deverá ter sido advertido de que poderá denunciar-se nessa experiência. Isso leva a perguntar se podem ser esperadas as mesmas reações tanto quando a atenção do sujeito está dirigida para o complexo, e a que ponto a intenção de ocultar alguma coisa pode afetar os modos de reação em pessoas diferentes.
Neste tipo de tarefa, o entrevistador pode ainda se enganar, e ser induzido a erro por neuróticos que reagem como culpados, quando pressionados por sentimento de culpa anterior que se atualiza no momento da acusação.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O caso Halsmann

O parecer do perito no caso Halsmann é o título de um texto publicado por Freud em 1931, no qual ele analisa as conseqüências de um parecer feito pela faculdade de medicina para o tribunal de Innsbruck em 1929.
Esse parecer tinha como objetivo fornecer elementos para o julgamento de um jovem estudante, chamado Philipp Halsmann, que fora acusado de parricídio.
Dois temas psicanalíticos nortearam o parecer da faculdade de medicina: o complexo de Édipo e a repressão.
O que nos interessa salientar aqui é que Freud adverte que tais formulações sobre processos psíquicos muitas vezes não fornecem a clarividência esperada. Antes, podem tornar-se obstáculos ao se imputar responsabilidades.
O complexo de Édipo, por exemplo, se faz presente na infância em todos os humanos, e no adulto é encontrado em graus de intensidade variáveis.
E justo por estar presente em todos os homens, o complexo de Édipo não pode servir de fundamento e causa para esclarecer sobre a culpabilidade penal.
No caso em questão, quando o parecer foi escrito não fora sequer demonstrado objetivamente que o jovem tivera cometido o crime.
Se a autoria do ato tivesse sido comprovada materialmente, aí sim haveria fundamento para se introduzir o complexo de Édipo, com o intuito de esclarecer o motivo para o ato inexplicável, e não para atribuir responsabilidade.
Mas, uma vez que não havia provas efetivas contra Halsmann, a menção ao Édipo, ao contrário do desejado, surtiu efeito desorientador porque, atribuir como causa as divergências existentes nas relações entre Halsmann e seu pai não constituíam dados sólidos para fornecer uma base segura sobre a qual se pudesse presumir a ação criminosa.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O caso Pierre Rivière

O dossiê sobre o caso do parricida Pierre Rivière, organizado no Collège de France por um grupo de estudiosos sob a coordenação de Michel Foucault, estuda as relações entre psiquiatria e justiça penal.
O dossiê é exemplar de como as relações entre psiquiatria e justiça penal sempre foram fontes de dificuldades, quando o que está em jogo envolve o diagnóstico sobre a saúde mental de um acusado.
Rivière matou a mãe, a irmã e o irmão porque acreditava que os três estavam em acordo para perseguir seu pai, a quem queria proteger.
O caso foi relatado numa revista de 1836 sobre saúde pública e medicina legal. A publicação incluía um resumo dos fatos e três relatórios médicos: o do médico da província em que aconteceu o crime, o do médico da cidade que era encarregado de um asilo importante, e outro assinado por vários psiquiatras e legistas muito conhecidos na época, dentre os quais se destacava o nome de Étienne Esquirol, reconhecido psiquiatra francês do século XIX, precursor da psiquiatria científica.
Esses três relatórios divergiram quanto ao gênero de análise e às conclusões a que chegaram os peritos.
Do conjunto das peças judiciárias sobressaía o fragmento de um memorial redigido pelo acusado, documento surpreendente porque revelava a integridade lógico-racional de Rivière.
O relatório do médico da província chamado Bouchard, pedido pela acusação, representa a medicina não especializada da época. Bouchard não encontra no comportamento de Rivière evidências patológicas, conclui que ele era responsável no momento do ato e atribui o crime a um estado de exaltação momentânea.
Embora fosse um médico de reputação notória na província, faltavam a Bouchard conhecimentos sobre as categorias com que trabalhava a psiquiatria moderna, como o conceito de monomania descrito por Esquirol para caracterizar o delírio parcial, uma espécie de micromania em que o delírio se limita a um número reduzido de objetos. Na monomania homicida certo tipo de crime atestava por si só a loucura, ou seja, o ato criminal tomado em si mesmo, era o sinal da loucura. Bouchard descartou em seu parecer a possibilidade de Rivière ser monomaníaco.
A monomania não era uma categoria muito bem aceita na justiça punitiva, porque os operadores dessa justiça desconfiavam da intervenção da psiquiatria. Temiam o poder decisório crescente que ela conquistava na atribuição de responsabilidade do acusado.
O relatório de Vastel, o médico de cidade, foi pedido pela defesa. Esse parecer utiliza o consenso especializado da psiquiatria para produzir uma nova intervenção no poder judiciário. A conclusão de Vastel oscila entre a incoerência intelectual e o déficit mental do acusado. Ele mostra a fraqueza congênita da mente de Rivière, sua idiotia. Procura demonstrar a lacuna, a disfunção, a fraqueza primária de sua consciência. Para Vastel, Rivière vagueia de delírio em delírio, e o ato do crime tenta dissolver essa fantasmagoria delirante.
O terceiro relatório surge como instrumento de intervenção da psiquiatria parisiense, após a condenação à morte de Rivière, a pedido da defesa. O documento não insere nenhum novo elemento na análise, apenas ratifica o entendimento de Vastel sobre o caso. O laudo evita um diagnóstico preciso, e compara o comportamento de Rivière com o dos monomaníacos que recobram a razão depois de um acesso paroxístico.
Pautada no argumento médico, a defesa de Rivière conseguiu o indulto e a pena de morte foi convertida em prisão perpétua. Mas Rivière, que ansiava pela condenação à morte, dá cabo de sua vida cinco anos mais tarde.
A participação do poder médico-psiquiátrico da época no caso Rivière significou a preparação de uma virada nas relações entre psiquiatria e poder punitivo. A psiquiatria trabalhava em prol da legalização da internação ex-offício e voluntária em estabelecimentos asilares. O confinamento psiquiátrico, que se desejava tão eficaz e imperativo quanto o penal, tinha a seu favor o poderoso argumento preventivo, de poder intervir antes que um ato criminoso fosse cometido.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O valor da confissão

Face às dificuldades inerentes à atribuição de responsabilidade, a psicanálise pode contribuir de forma esclarecedora, pois no diálogo analítico, movimento em cuja atmosfera se radicaliza a potencialidade da interlocução, emerge a confissão do sujeito.
Poderosa chave na revelação das verdades da intenção, a confissão iguala em peso, as noções de pecado, culpa, responsabilidade e castigo.
Enquanto objeto de prova da responsabilidade do sujeito, a confissão encontra força no âmbito tensional em que essas noções ressoam como pressões da cultura.
Mas numa sociedade como a que presenciamos hoje em que essas noções são como moedas que circulam no câmbio moral mais por tradição que por seu valor real de troca, que importância se pode atribuir ainda a confissão do sujeito?

O valor da confissão é retomado quando ela se coloca em ação, como prova técnica, no sítio efervescente das verdades inconciliáveis que domina o cenário do julgamento; quando ela evidencia os motivos e torna compreensíveis os móbeis do crime.
Contudo, mais do que ninguém o psicanalista conhece as armadilhas do eu confesso, lugar privilegiado da denegação. Sabe que a sinceridade é o primeiro obstáculo com que se depara alguém empenhado em seguir o rastro da intencionalidade, pois na manifestação da fala se encontra o intuito de apagá-la. Eis o ponto em que se tece a complexidade da confissão.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Exame pericial

O que se espera do especialista perito?
Durante o exame pericial algumas regras de ordem ética precisam ser observadas.
Sabe-se que, como tarefa, cabe ao perito comunicar ao tribunal os resultados obtidos na investigação pericial.
E quanto ao examinado?
O especialista ao se apresentar ao examinado precisa deixar claro sua condição de perito: alguém a quem foi dada a missão de informar à Justiça sobre a entrevista a ser realizada.
O perito respeita o examinado como pessoa, orientando-o sempre que possível.
Guarda o segredo profissional compatível com sua missão, e permanece alerta para que informações decorrentes desse tipo de exame não sejam utilizadas fora do gabinete do juiz.
A posição do perito é incômoda: ele não é juiz nem testemunha; não lhe cabe fiscalizar a lei nem defender o acusado, contudo, suas observações podem definir o curso de uma sanção.
Os maiores problemas da perícia estão na relação entre perito e examinado. Das dificuldades que enfrenta o perito, duas são cruciais: uma é que o acusado se percebe sem escolha; a outra é que o exame não tem compromisso terapêutico.
Podemos então nos perguntar sobre o aspecto qualitativo dessa relação, especialmente no que se poderia esperar de colaboração e de sinceridade. Uma relação que desde sempre está atravessada pela figura do julgamento subjacente às conclusões do perito.
O pedido feito ao perito pela Justiça é que dê respostas claras, científicas e definitivas do caso, em função da relação de causalidade entre aspectos psicogênicos e psicopatológicos do acusado com o fato investigado.
Em suma o que se quer do perito é que ele determine se o crime está ou não relacionado a um estado patológico.
Mas quando se leva em conta a indefinição das fronteiras entre o normal e o patológico, e a dificuldade que existe no jogo das tensões entre o que é possível ao perito concluir e a urgência em concluir do juiz, não se pode esquecer o que há de irrealizável, o que há de impossível na tarefa do perito.