quinta-feira, 5 de junho de 2008

Filosofando V - O berço da psique e do eu

Na Grécia primitiva, reino do pensamento animista, a idéia de alma estava associada a experiências fundamentais como vida e morte. Significava uma obscura tomada de consciência pelo homem de seu estar no mundo. A alma estava relacionada à força misteriosa da vida animal e humana, cuja existência acreditava-se poder ser apreendida nas atividades vitais da respiração e do sangramento.
O conceito de natureza concebido nessa época tem origem na constituição espiritual do homem. Mas mesmo antes dessa idéia ter surgido, em sua pré-história, as coisas do mundo eram percebidas numa perspectiva orgânica, na qual cada parte formava um todo. Havia sempre a idéia de uma totalidade ordenada e viva que tudo presidia e a tudo dotava de sentido.
Os poemas homéricos retratam um mundo de heróis: homens fortes que buscavam a felicidade no prazer e na ação, e viam na coragem o sentido ético da existência. O homem homérico amava acima de tudo a vida. Consciente de sua força e de sua ação ativa, este homem lamenta como nenhum outro sua morte – a vida perdida, sina para a qual não havia consolo possível. Na morte, a alma (da natureza do vento) abandonava o corpo em direção ao Hades.
Mas os sofrimentos do homem, suas lamentações sobre a fugacidade da vida e dos prazeres sensitivos que se faz notar na poesia posterior a Homero, denotam sentimentos que revelam a importância da vida individual. Há na poesia pós-homérica o desenvolvimento do conteúdo do pensamento seja como exigência normativa do social, seja como expressão do indivíduo. Esse tipo de poesia apresentava reflexões filosóficas e separava-se ou mesmo abandonava o mito, outrora sempre presente na epopéia.
A poesia jônica revela uma recém descoberta: o eu, mais intimamente relacionado à totalidade do mundo, à natureza e à sociedade do que hoje o concebemos; nunca eu como entidade separada e solitária, de tal modo que as manifestações da subjetividade não são exclusivamente subjetivas; porque o eu individual exprimia e representava em si a totalidade do mundo objetivo e suas leis.
Com o surgimento da especulação racional alimentada pelos pensadores jônicos, tem lugar um desacordo entre alma e corpo: a alma é da ordem do místico e do sagrado, procedente do Além, ao passo que o corpo é apenas expressão do aprisionamento da alma no mundo. Nostálgica e encerrada num corpo destituído de sentido, a alma buscava emoções de plenitude nos cultos a Dioniso. Rituais regados a vinhos, sons e danças frenéticas, que culminavam em transes de êxtase por seus participantes - momentos em que a alma se revelava a si mesma.
A tragédia floresce no momento em que o heroísmo cede lugar ao conhecimento reflexivo e sensitivo. Alimenta-se das raízes do espírito grego para expressar um heroísmo mais interior, estreitamente traçado no mito e na forma de ser que dele advém. Na tragédia, a poesia grega volta a abranger a unidade do humano – força estruturadora e espírito criador – aproximando-se por esse viés da poesia homérica. Gênero pleno de simbolismos, a tragédia configurava uma nova intuição da totalidade da existência; surgi pari passu a transformações nas aspirações e na ordenação da vida social.
O início da história grega se funda no sentimento da dignidade humana. Surge como princípio da valoração do homem, não de seu eu subjetivo, individual, autônomo, mas sim de um eu consciente das leis gerais que o determinam, reflexo de uma imagem genérica, universal e normativa do homem.

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