quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sala de desjejum

Uma tradição popular adverte contra contar sonhos, pela manhã, em jejum. O homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo de sortilégio do sonho. Ou seja: a ablução chama para dentro da luz apenas a superfície do corpo e suas funções motoras visíveis, enquanto, nas camadas mais profundas, mesmo durante o asseio matinal, a cinzenta penumbra onírica persiste e até se firma, na solidão da primeira hora desperta. Quem receia o contato com o dia, seja por medo aos homens, seja por amor ao recolhimento interior, não quer comer e desdenha o desjejum. Desse modo, evita a quebra entre mundo noturno e diurno. Uma precaução que só se legitima pela queima do sonho em concentradotrabalho matinal, quando não na prece, mas de outro modo conduz a uma mistura de ritmos vitais. Nessa disposição, o relato sobre sonhos é fatal, porque o homem, ainda conjurado pela metade ao mundo onírico, o trai em suas palavras e tem de contar com sua vingança. Dito modernamente: trai a si mesmo. Está emancipado da proteção da ingenuidade sonhadora e, ao tocar suas visões oníricas sem sobranceria, se entrega. Pois somente da outra margem, do dia claro, pode o sonho ser interpelado por recordações sobranceira. Esse além do sonho só é alcançável num asseio que é análogo à ablução, contudo inteiramente diferente dela. Passa pelo estômago. Quem está em jejum fala do sonho como se falasse de dentro do sono.
Texto de Walter Benjamin. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995

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